Há pouco mais de uma semana, no dia 14 de julho, a cidade de São Paulo foi uma vez mais tomada por uma multidão de evangélicos. Quem estimou o número foi a Polícia Militar, que costuma ser parcimoniosa nessas avaliações. Os organizadores da passeata, uma superprocissão pós-católica e pós-moderna, deixaram os cálculos para lá. Primeiro, começaram falando em 5 milhões de fiéis. Depois, diante daqueles rios de seres humanos, sentiram que as contas eram desnecessárias. A Marcha para Jesus, que se repete anualmente há 20 anos e cresce de uma edição para outra a olho nu, tornou as cifras irrelevantes. Não importa mais se são 2 milhões, 3, 1 milhão e meio. Qualquer das alternativas já é muito. Nessa prodigiosa multiplicação dos crentes, as massas são mais contundentes que as estatísticas e materializam, muito mais que uma cândida profissão de fé, uma formidável força política. Quem viver verá.

O que vai se transformando, diante de nossos olhos, não é meramente a identidade religiosa do Brasil, mas sua identidade política. Os evangélicos são a preferência religiosa que mais cresce no país (61,2% em dez anos), enquanto a Igreja Católica perde ovelhas e terreno em alta velocidade. O presidente da Marcha, Estevam Hernandes, fundador e líder da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, comemorou a expansão em seu discurso de abertura. Na visão dele, os rebanhos evangélicos – que, pelos dados do IBGE, alcançaram a marca de 42,3 milhões de fiéis em 2010 – estarão empatados com os católicos em 2020. “O Brasil será o maior país evangélico do planeta”, afirmou Hernandes.

"Mais que uma cândida profissão
de fé, a Marcha para Jesus traduz uma formidável força política"

Se a previsão se confirmar, o Brasil político será outro. Aliás, já é outro. No Congresso Nacional, a bancada evangélica já representa um dos segmentos mais ativos e influentes. O peso desses líderes religiosos na vida partidária é notório e crescente. Na comunicação social também. Tanto que podemos dizer, com segurança, que esse novo fenômeno político resulta de um fenômeno anterior, que se deu na comunicação. A presença dos interesses dessas igrejas no controle de estações de rádio e televisão – e em redes nacionais ou regionais de emissoras – vem se expandindo sem restrições e fez com que, na TV e no rádio, a linguagem da evangelização mudasse para sempre. Os católicos tentaram fazer frente à explosão dos telepastores. Seu fracasso foi bíblico. Montaram suas próprias redes, mas perderam a concorrência comercial (pois se trata de uma guerra mercadológica pela audiência) para os novos rivais. Padres cantores existem, é bem verdade, assim como padres aeróbicos. Mas, hoje, na televisão, eles aparecem com aquela cara de minoria política que chega a ser desconcertante. Aglutinam suas fãs, aos milhares, mas não arrastam multidões como essa que acabamos de ver na “Marcha para Jesus”. À exceção de festas tradicionalíssimas, como o Círio de Nazaré, em Belém, as multidões das grandes cidades brasileiras são evangélicas.

Claro que as multidões não são apenas isso – e, aqui, em se tratando de megaprocissões de megalópoles, é preciso segurar o passo com o andor, ou, melhor, é preciso não acelerar demais o trio elétrico. As multidões são volúveis. Ou, para sermos mais educados, são plurais. Elas são mais evangélicas que católicas, parece claro. Mas também são gays, por exemplo. Uma das manifestações públicas – hoje cíclicas – que mais ganharam visibilidade recentemente é a Parada Gay. A comparação talvez soe esdrúxula, mas não é tão absurda assim: a Marcha para Jesus e a Parada Gay têm em comum a pretensão de afirmar a legitimidade e o poder de uma forma de vida (ou de culto) até então tida como minoritária. São manifestações politicamente equivalentes.

A multidão é um sujeito político muito recente, que só entrou em cena a partir do crescimento das cidades e da ordem democrática. Multidões tomam as ruas para mostrar força e, graças a Deus, são diversas. Um dia são ecológicas. No outro, andam de bicicleta. Numa noite, é corintiana. Noutra noite, é Carnaval. Multidões também festejam o esquecimento e a antipolítica, como quando vão ouvir pagode e comprar rifa nos megashows de Primeiro de Maio – o mais despolitizado de todos os comícios.

Quem disser que a democracia é um ponto de equilíbrio entre as forças por vezes antagônicas de suas multidões não estará tão longe de acertar. Tomara que o que vem por aí não venha com tintas de intolerância religiosa. Ou política. Que algo está vindo, está. Quando a multidão diz que uma coisa vai acontecer, é porque ela já começou a acontecer.

EUGÊNIO BUCCI
é jornalista e professor da ECA-USP (Foto: Camila Fontana)

Fonte: Época
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