Dá para juntar rap, gospel e temáticas sociais em um ritmo só? Para os membros da banda Ao Cubo, essa tem sido uma inusitada fórmula de sucesso desde 2003. Os quatro integrantes – Feijão, DJ FJay, Cléber e Dona Kelly – têm emplacado hits por vezes bem religiosos, que fazem sucesso no YouTube, e também músicas críticas ao sistema, com a melodia típica do hip hop paulistano.

Nesta quinta-feira (20), eles se apresentam pela 9ª vez na Marcha Para Jesus, evento evangélico que reúne milhares de fieis todo ano na Zona Norte de São Paulo. No show, prometem revezar sucessos antigos com canções nunca antes apresentadas ao vivo.

O objetivo da apresentação não é fácil: a banda quer agradar os fãs, que já aceitam bem o rap com temática religiosa, e também o conservador público gospel, que ainda torce o nariz para o ritmo da periferia.


A busca por esse equilíbrio é tão forte que está até no nome do grupo: Ao Cubo é uma referência à Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), mas não denuncia, de cara, o lado gospel da banda.


“O nome foi escolhido justamente por não ter um cunho religioso, para poder atingir todos os públicos”, explica o DJ FJay.



“As rádios evangélicas não tocam nossa música porque é rap. As rádios tradicionais não tocam nossa música porque é gospel. A gente tentou fugir desses rótulos, com um nome que ainda tivesse um significado muito forte pra gente”, diz Feijão.

Sucesso em gênero inédito


Para conseguir se destacar, o grupo combinou ao longo dos anos:

Parcerias com cantores conhecidos, dentro e fora do gênero gospel
Forte presença nas redes sociais
Revezamento entre músicas sobre religião e de temática social

Um exemplo do sucesso do rap gospel é o último lançamento da banda, o single "Game Over", que será apresentado pela primeira vez ao vivo na Marcha Para Jesus. Em apenas três semanas, o clipe já alcançou quase 500 mil visualizações no YouTube.

Para bombar em um gênero que praticamente não existia antes, a banda investiu em colaborações com cantores conhecidos em seus nichos.

"No geral a gente escolhe essas parcerias pelo critério de afinidade mesmo, quando vai nascendo uma música às vezes a gente já vê a cara de alguém, mas claro que às vezes também é bom para alcançar novos públicos", diz o DJ FJay.

O clipe da música "Vaso", um dos mais recentes sucessos com temática religiosa, contou com a presença do apresentador de televisão Yudi.

"Nesse caso a parceria tinha tudo a ver com a letra porque o Yudi estava em um momento de conversão, de mudança, e é justamente sobre isso a música", diz o DJ.


Antes de Yudi, o grupo já havia colaborado com cantores gospel como Pregador Luo, Irmão Lázaro, Soraia Moraes, Ton Carfi e Thalles Roberto, e também com nomes conhecidos do público geral, como Péricles, Netinho de Paula, e até Neymar, que participou do clipe de "Nasci pra vencer".

Ao Cubo cantou com o Péricles na Marcha Para Jesus de 2014 — Foto: Divulgação/Marcha Para Jesus

O jogador Neymar ao lado dos integrantes do grupo Ao Cubo — Foto: Divulgação


Entre dois mundos


Os quatro integrantes, que vieram de diferentes bairros da periferia de São Paulo, colecionam referências e ídolos muito diferentes. No entanto, os quatro concordam que o maior desafio da banda é justamente transitar entre dois mundos tão diferentes: o do rap e o do gospel.

"Geralmente quem só ouve gospel não vai querer encontrar, lá na playlist de gospel do Spotify, um rap. Ao mesmo tempo, quem procura um rap não procura uma música na playlist de gospel nunca. A gente está em duas caixinhas ao mesmo tempo, duas gôndolas diferentes no mercado," explica Kelly.

Para Feijão, que é autor de várias das canções do grupo, a saída é focar na qualidade do produto que a banda entrega, e não tentar se encaixar em apenas um nicho só para agradar.

"A nossa batalha sempre foi fazer música, mas a gente sabe que no gospel isso às vezes é deixado de lado. Para algumas pessoas, o mais importante é você levantar as mãos, fechar os olhos e fazer um louvor", diz.

"A gente gosta muito de fazer isso na igreja. Só que, na nossa música, essa não é a proposta", afirma Feijão.

Feijão, Cléber, Dona Kelly e DJ FJay são os quatro integrantes da banda de rap gospel Ao Cubo — Foto: Divulgação

Para balancear as músicas de inspiração religiosa, que fazem mais sucesso com o público das igrejas conservadoras, e as letras sobre questões sociais, o grupo garante que todos os integrantes participam da concepção de cada canção.

"Na nossa música o legal é que cada um dá uma pitada. Pelo menos uma frase, um trechinho. A essência de cada um está sempre ali", diz FJay.


Sem rótulos

Ao contrário de outros artistas gospel, que declaram abertamente quais igrejas evangélicas seguem, os membros do Ao Cubo evitam falar em vertentes e denominações religiosas.

"Cada uma aqui vai numa igreja, a gente não tenta colocar placas. A gente escolhe isso pra não dividir, pra não rotular mais ainda", diz Kelly.

Mas a decisão tem um custo: o grupo afirma que, muitas vezes, perde apoio de setores do mercado evangélico.

"A maior parte dos cantores gosta de fazer parte do mercado gospel. Porque é uma forma fácil de você atingir um público, é um nicho. Mas a gente vai contra isso e aí nosso próprio meio às vezes vira as costas pra gente", afirma a cantora.

Banda paulistana de rap gospel, Ao Cubo lançou em maio o single "Game Over" — Foto: Divulgação


Para ela, o objetivo de não se alinhar a nenhuma igreja específica é agregar pessoas de todas as vertentes, e principalmente, não afastar o público que não se identifica com nenhuma denominação.

"A nossa meta tem que ser juntar mesmo. Não importa se a pessoa está dentro da igreja, se está fora, se tá fazendo coisa que você não concorda. É juntar e pronto. Na nossa mesa cabe todo mundo", completa Feijão.

Apesar de rejeitar rótulos, a banda assume que se adaptar às críticas e gostos do público é importante para chegar ao sucesso.


"Tem que achar um equilíbrio, pra se adaptar ao sistema, mas também colocar o que a gente pensa, nossa arte. A gente precisa sim se preocupar em agradar porque não adianta a gente colocar nossa verdade na música se ninguém vai ouvir", diz Kelly.

Cutucando a ferida

As letras do Ao Cubo abordam temas tão díspares quanto são os ritmos rap e gospel.

Em "1980", música que é até hoje o maior sucesso da banda, os rappers contam a história de uma mulher grávida que foi alertada pelos médicos que seu filho teria uma deficiência.

A letra fala que um milagre pode enfim acontecer: "É só você crer, você crer, você crer, você crer", diz a música lançada em 2004 que ainda hoje faz sucesso nas igrejas.

Já o lançamento mais recente da banda, "Game Over", fala abertamente de drogas e álcool:

"Eu tenho uns amigo que bebe, eu tenho uns amigo que fuma/Quero sorriso no rosto deles, mas não entendem um trecho do texto/Enquanto os boy tão na usp, eles nem passaram do sexto/Se sentem num clipe de rap fumando maconha ganhando uns like"

A ideia foi falar diretamente com os jovens, mas sem tentar dizer abertamente o que eles devem ou não fazer da vida, explica Cléber.

"Quer fumar? Fuma quieto, fuma no seu canto. Não fica ostentando, porque se você fizer isso, se ficar exibindo, você pode destruir a vida de outras pessoas que você nem conhece", avalia o compositor. "Se você quer fazer, faz por você, não puxa ninguém. Cada um faz o que quer, mas a gente quer deixar nossa mensagem."

Além de uso de drogas, as letras do Ao Cubo também abordam vários outros temas considerados polêmicos dentro das igrejas evangélicas.

Veja abaixo o que os integrantes da banda pensam sobre:

Racismo: "A gente sempre sofreu preconceito, porque somos quatro negros. A gente sabe muito bem o que é preconceito, o que é ser julgado pelo que você pensa. Mas a gente tem que tomar cuidado com a forma que fala [sobre esse tema], porque a informação é deturpada, já querem te julgar por outras coisas", diz Feijão.

Construção de gênero: "A gente nasce e vê que, para as crianças, não tem brinquedo de menino e de menina. O menino brinca de boneca, usa maquiagem, o salto da mãe. São os adultos, os pais, que querem colocar a criança em caixas. E dentro dessa caixa tem brinquedo de menino ou de menina. Aí a criança vai crescendo assim e quando vira adulto, o que é que a gente ouve? Que você precisa pensar fora da caixa pra ter sucesso. E aí a gente vê como a sociedade é bagunçada, primeiro a gente diz uma coisa, depois diz outra", diz Cléber.

Machismo: "É muito difícil estar nesse lugar, de mulher, dentro do rap, evangélica, cristã", avalia Kelly. "Até dentro do grupo acaba sendo difícil porque ela [Kelly] é a única mulher no meio de três homens e, como a gente cresceu numa cultura machista, é muito provável que o machismo acabe brotando da nossa parte em algum momento. Então tem que se policiar, ela tem que se posicionar, a gente vai se ajustando," diz Cléber.

Fonte: G1
Share To:

Eginoaldo

Post A Comment: