Em 2004 foi lançado o filme “A Paixão de Cristo”, de longe a me­lhor produção sobre Jesus Cristo no cinema. Sua fidelidade ao que dizem os quatro Evan­gelhos, a ousadia de se recriar os diálogos nas línguas que eram faladas à época e o (hiper)realismo das cenas são de um valor ímpar na história da indústria cinematográfica.

No entanto, apesar da excelente qualidade, a polêmica em torno da película foi ainda maior: de um lado, acusações de antissemitismo ao diretor e roteirista Mel Gibson; por outro, reclamações da crítica especializada afirmando que o filme era “demasiado violento”.

De fato, há bastante exposição de cenas sangrentas, mas, naquele mesmo ano, essa mesma crítica teceu todos os elogios possíveis à primeira parte da saga “Kill Bill”, de Quentin Tarantino. Fiquei bastante intrigado à época (eu cursava meu primeiro ano de jornalismo): “Como é possível elogiar ‘Kill Bill’ e pichar ‘A Paixão de Cristo’ pelo mesmo motivo?”.

Muito bem. Fui assistir “Noé” logo de sua estreia: antes mesmos de ver a repercussão do filme no Brasil (onde mais causou danos as declarações de Russell Crowe acerca dos aeroportos e do trânsito do país) e ao redor do planeta, fiquei interessado pela obra por dois motivos principais: o conteúdo nela abordado e quem a dirigia.

Darren Aronofsky é um dos maiores diretores do cinema mundial: em comum nos seus filmes, vários aspectos técnicos, mas um ponto principal: o constante questionamento dos valores e objetivos da vida.

Mesmo com temas variados, todas suas produções convergem para uma visão, digamos, apocalíptica do ser humano: apontam suas mazelas (“Ré­quiem”), sua decadência (“O Lutador”), sua busca pela perfeição (“Cisne Negro”), pela compreensão do mundo (“Pi”) e da morte (“Fonte da Vida”). Tendo em vista esse histórico, ninguém deveria se dizer surpreso ao ver o tipo de abordagem presente em “Noé”.

No roteiro, adaptado dos dez capítulos iniciais do livro de “Gênesis” (o primeiro do Velho Testamento, chamado “Tanakh” pelos judeus), há de fato algumas diferenças substanciais com os textos canônicos.

Em alguns casos, trata-se da livre interpretação daquilo que não está dito (a reunião da família em meio à arca durante a tempestade, por exemplo). Já em outros, há a chamada “licença poética”, ou uma interpretação peculiar de algo que fora descrito de outra maneira (caso dos Guardiães).

Por fim, há de fato algumas inversões temporais — coisas que teriam acontecido depois, conforme a Bíblia, no filme sucedem antes, como a embriaguez de Noé — e até mesmo mudanças pontuais em personagens (a narrativa bíblica não conta nada sobre a gravidez da esposa de Sem, nem relata que Cam e Jafé fossem tão jovens e solteiros).

Nada disso, entretanto, diminui o valor do filme. Porém, como aconteceu com a obra de Mel Gibson dez anos atrás, a mais recente produção de Darren Aronofsky também gerou dois tipos distintos de crítica e desagradou a diferentes grupos.

O primeiro grande problema também se deu com comunidades de países do Oriente Médio, estados islâmicos: no Kuwait, no Qatar, nos Emirados Árabes e no Bahrein a produção foi proibida de ser exibida antes mesmo de sua estreia. A justificativa para tal: a representação de Noé e a trama exibida são contrárias às leis islâmicas, que proíbem a retratação de profetas.

A outra polêmica, que se alinha àquela das reclamações sobre a “violência excessiva” presente na representação da Paixão de Cristo, acontece em razão de alguns momentos pontuais da trama que causam um grande impacto e suscitam questionamentos não apenas ao filme, mas à história que o inspira.

Não falo dos que buscam ridicularizar as narrativas da Criação do Homem, do Dilúvio e do (re)povoamento da Terra: isso é papo pra outra hora. Refiro-me a um dos maiores clichês de todos os tempos, que tornou a ser repetido após a exibição do filme: “Que Deus é esse que mata e manda matar?”, ouvi mais de uma vez.

Ainda que não tenha sido inspirada diretamente na Bíblia, na mais chocante sequência do filme o personagem Noé emula outra passagem vetero-testamentária: Abraão e Isaac. Trata-se da mais perfeita tradução dos conflitos inerentes à fé.

Dez anos depois, talvez eu tenha encontrado a resposta àquela pergunta que tanto me incomodou ao ler as críticas à “Paixão de Cristo”: As obras de Tarantino (ou algum desses blockbusters de ação, principalmente aqueles que combinem “bem x mal”, destruição e vingança) não causam exclamações de horror à violência por um simples motivo: mais do que serem apenas ficção, em nenhum momento se atrevem a dizer que “a culpa também é sua”.

Em tempos no qual é cada vez mais frequente ver gente sendo amarrada em postes e outros milhões aplaudindo, se nos recusamos a confiar no Jesus de Mel Gibson talvez só nos reste esperar pelo Noé de Darren Aronofsky.

Fonte: Jornal Opção
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Eginoaldo

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