Pela primeira vez na história política brasileira, questões de valores religiosos e éticos estão em vias de definir uma eleição presidencial.
É certo que para a vitória de Collor de Mello contra Lula da Silva na segunda volta das presidenciais em Dezembro de 1989 muito contribuiu o forte apoio das igrejas evangélicas, mas os temas económicos e sociais sempre prevaleceram nas disputas eleitorais.

Desta feita, na primeira volta das presidenciais a questão do aborto prejudicou notoriamente Dilma Rousseff, que viu o voto evangélico de protesto religioso migrar para Marina Silva.

A armadilha do aborto
Os estudos sobre a repartição do voto indicam que a evangélica Marina quase duplicou a sua votação em relação às intenções de voto expressas nas sondagens quando a candidata do Partido dos Trabalhadores foi apanhada pela polémica sobre o aborto.

Entre os eleitores que mudaram de orientação de voto na recta final da campanha, optando por Marina, uma sondagem da Datafolha refere que apenas 7%, sobretudo entre classes de mais altos rendimentos e maior escolaridade, o fizeram devido ao escândalo de corrupção na Casa Civil do presidente envolvendo uma protegida de Dilma.

Os 19% conseguidos por Marina Silva foram, em larga margem, devidos ao voto evangélico, sendo particularmente marcante a rejeição de Dilma entre mulheres evangélicas de mais baixos rendimentos e menor escolaridade.

A relevância das posições dos candidatos em relação ao aborto e a polémica mediática redundaram, entretanto, num apoio recorde à manutenção da actual legislação que penaliza com um a três anos de prisão a prática da interrupção voluntária da gravidez excepto em casos de violação ou risco de vida para a mãe.

Em 1993, quando a Datafolha começou sondagens sobre a questão, 54% dos inquiridos declaravam apoiar a lei em vigor, mas após a primeira volta das presidenciais esse número, que passara para 68% em 2008, atingiu os 71%.

O factor evangélico
O crescimento do protestantismo no Brasil a partir dos anos 50 do século passado, com preponderância dos movimentos evangélicos, acentuou o conservadorismo e a intransigência moral numa sociedade maioritariamente católica.

As igrejas pentecostais, que juntamente com outros movimentos cristãos carismáticos acolhem mais de 20 milhões de brasileiros, caracterizam-se pelo literalismo na interpretação da Bíblia, a crença na eficácia da oração, a relevância da conversão, o proselitismo, a glossolalia (o dom das línguas ou falar em línguas alheias referido nos Actos dos Apóstolos), fé nos exorcismos e milagres.

A cura espiritual prometida pelas igrejas evangélicas e o forte empenhamento individual nos rituais de um grupo coeso ajudam a explicar a explosão das igrejas pentecostais e neopentecostais entre populações pobres e marginalizadas em sociedades em mudança acelerada, tal como sucedeu no Brasil.

O pentecostalismo, seja entendido como um factor de modernização por via do rigor ético, autodisciplina e trabalho, além da promoção da coesão familiar, ou interpretado como fenómeno regressivo através da crença passiva na recepção de dádivas divinas por via da oração e da entrega do dízimo, tornou-se num factor que, a par da doutrina católica nominalmente partilhada por cerca de 60% dos brasileiros, condicionará por muito tempo qualquer discussão de questões como o aborto, eutanásia, casamento homossexual ou pesquisas genéticas.

Proselitismo político-religioso
Os valores conservadores do eleitorado evangélico, equivalente a cerca de 25% da população, foram menosprezadas pelo Partido dos Trabalhadores, que só no final da primeira volta tentou, tardiamente, valorizar a alegada fé religiosa da sua candidata.

Dilma, renegando de suas anteriores afirmações pró-liberalização do aborto, reitera a sua fé católica e tenta agora cativar as graças dos pastores da Convenção Nacional das Assembleias de Deus, da Igreja Universal do Reino de Deus e demais denominações evangélicas.

José Serra, católico praticante em período eleitoral, tal como a adversária, tem a seu favor a coerência de sempre ter defendido posições anti-liberalização do aborto, mas não pode dar por adquirido o voto de evangélicos e católicos que rejeitam a candidatura de Dilma.

Qualquer que seja o resultado desta eleição, e Dilma continua favorita, os patronos de causas religiosas vão reforçar o seu peso na tomada de decisões políticas e condicionar as estratégias partidárias.

Daí à manipulação e patrocínio religioso de candidatos e partidos vai um passo muito curto, que esta campanha poderá contribuir para acelerar.

A descriminalização do aborto, praticado por 700 mil a 1,25 milhões de brasileiras todos os anos, sobretudo nas regiões mais pobres do Nordeste, segundo estimativas do Ministério da Saúde, estará fora de questão nas próximas legislaturas.

Fonte: Jornal de Negócios Online
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Eginoaldo

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