Fazia tempo que o Jornalismo brasileiro não andava tão divertido. Ultimamente, todos os interesses e as opiniões se escondiam nas entrelinhas. Nas últimas décadas, o monopólio de uma empresa de comunicação fez com que tudo fosse muito comedido. Afinal, não havia ameaça. Quando ela surgia, era abatida nos bastidores. Ontem começou uma reviravolta. Quase uma guerra. Em rede nacional. Hoje, ela atingiu o seu auge. O critério jornalísitico sumiu completamente dos principais telejornais da Globo e da Record.
O primeiro critério em que se nota isso é o tempo. Normalmente, uma matéria de telejornal tem uns dois minutos, quando tem certa importância. Na Globo ontem uma matéria chegou a dez minutos. Hoje, na Record, não contei, mas arrisco dizer que uma mesma cobertura foi a quase 20. A notícia é bem simples e mereceria os dois minutos de sempre: o bispo Edir Macedo, dono da Record e da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e mais nove pessoas – algumas delas também ligadas à Rede Record – foram denunciados por lavagem de dinheiro. A cobertura do Jornal Nacional de ontem está nesse post. A cobertura da Record de hoje foi absurdamente fantástica, no sentido de inacreditável.
Mais ou menos ao mesmo tempo em que a emissora do bispo começava a sua matéria, a Globo fazia a sua parte. Hoje foram mais quase nove minutos, em três matérias: essa, essa e essa. O mais incrível é que não havia notícia nos 20 minutos de cobertura do Jornal da Record (a emissora não disponibiliza os vídeos na internet). Nada. Era apenas uma tentativa de afirmação da emissora frente às denúncias da Globo. É uma briga de duas gigantes, nitidamente. Os apresentadores Celso Freitas e Ana Paula Padrão, ambos ex-Globo, chamaram a matéria sobre as denúncias a Edir Macedo desde o primeiro bloco, mas ele ficou para o encerramento do Jornal. Logo de cara, na escalada, falaram que mostrariam os interesses por trás das denúncias. Nas chamadas no final do primeiro, segundo e terceiro blocos, o tema foi o trabalho social desenvolvido pela Igreja Universal, o crescimento da Rede Record como um incômodo à concorrência e novamente o trabalho da Igreja.
A cobertura começou mesmo no quarto bloco, e entrou com tudo. Já na cabeça da matéria principal, os apresentadores falaram no crescimento da Rede Record, que, segundo eles, é sinônimo de democratização do acesso à notícia, mas que esse crescimento incomoda a concorrência. Uso as mesmas palavras ditas por eles. O termo “manipulação”, que é bastante forte, foi utilizado, para descrever a prática da Rede Globo com relação à notícia. Já na reportagem, falou-se na agressividade da emissora concorrente, e partiu-se para uma espécie de análise da cobertura feita por ela. Tendenciosa, é claro. Como o Jornalismo B já havia feito, a Record mostrou o absurdo de uma matéria dessas ter dez minutos de duração e, também como o meu colega fez ontem, comparou com o tempo dedicado ao tema por outras emissoras. O que impressiona, até aqui, é a forma aberta com que esse tipo de coisa está sendo dita. É uma resposta direta e desproporcional, de quem se defende, mas ataca, e muito.
A coisa vai muito longe. A Record acusa a família Marinho de usar a televisão para seus interesses, e fala em acordos escusos, até em participação em fraudes eleitorais. A ligação da Globo com a ditadura, tão camuflada pelos Marinho, é altamente explorada na edição de hoje do Jornal da Record. O jornal fez um tour pela história da vênus platinada, sempre pelo lado negativo, mostrando todos aqueles casos que a Globo insiste em fingir que não existiram, como a influência direta na eleição de Fernando Collor, a tentativa de impedir a reeleição de Lula, as recorrentes “rasteiras” da emissora no atual presidente da República, a tentativa de esconder a campanha pelas Diretas Já, inclusive mostrando imagem de alguns manifestantes xingando a Globo na época. Alguns expressões utilizadas: “democracia nunca foi o forte da Globo”, “o poder (da Globo) teve origem na ditadura militar”, “a Globo nasceu de uma ação ilícita do governo ditatorial”. Todos os podres da principal emissora de televisão do Brasil foram escancarados. Questiona como a Globo teve acesso a documentos do Ministério Público protegidos por segredo de Justiça. Encerrou a primeira parte da cobertura questionando qual a razão para tanta raiva e tanta agressividade. “Razão pode estar na ameaça ao monopólio”, disse a Record, para em seguida citar boa parte de sua programação, como novelas, futebol, o reality show A Fazenda (que, afirmaram, bateu a Globo em audiência ontem, com 21 pontos a 16). Foi uma defesa exacerbada do seu suposto potencial, falando em aumento de audiência e de faturamento. Números foram apresentados. Ao longo do dia de ontem, de acordo com a reportagem, foram 341 os minutos em que a Record esteve em primeiro lugar. Quase cinco horas e meia, acrescentaram. Finalizou a afirmação: “Liderança que provoca desespero”. Resta descobrir quem é o mais desesperado.
A segunda parte da cobertura focou nas enormes benfeitorias que a emissora diz que a Igreja Universal realiza. Contou toda a história de fundação e expansão da igreja, do trabalho de Edir Macedo, das doações dos fiéis. Explicaram tudo aquilo que não tem explicação, mas em que tanta gente acredita. Que o dinheiro das doações vai para as sedes da igreja e para projetos sociais e patati patatá. As imagens eram de muitas crianças bonitas e limpinhas sendo tratadas por profissionais bonitos e limpinhos em ambientes igualmente bonitos e limpinhos. Tudo financiado pela IURD. No final, Celso Freitas e Ana Paula Padrão – ambos ex-Globo, repito – disseram que a Igreja afirma, por nota que confia na Justiça brasileira, que não vai se deixar levar por pressão de qualquer grupo, “nem mesmo de um que possui um monopólio que prejudica o Brasil”.
Entrevistas houve muito poucas. Um deputado, um ex-ministro, um advogado. Afinal, não se tratava de uma matéria convencional, com a transmissão de uma notícia. Era, antes, um editorial, uma coluna de opinião em defesa da emissora, em ataque raivoso à concorrente. A mesma raiva que a Record acusou a Globo de possuir na edição de ontem veio com tudo no Jornal da Record de hoje. Aliás, mais intensa e mais dirigida, mais aberta, mais explícita.
A cobertura do Jornal Nacional de hoje, que foi ao ar ao mesmo tempo que a da Record, teve a clara intenção de desmoralizar a Igreja Universal, o que é muito fácil. Qualquer um conhece a forma com que ela explora os fiéis. A Globo utilizou essa desmoralização para estender à concorrente seu aspecto negativo, associar as falcatruas da IURD com a Rede Record. Foram três matérias sobre o assunto. A reportagem da Record foi bem mais direta e mais agressiva, embora eles a tenham usado para acusar a Globo justamente de agressividade. A Globo está tentando manter sua posição mais sóbria, tentando parecer mais séria, mesmo que tenha dado um destaque desproporcional e tenha objetivos tão baixos quanto a Record. A disputa é entre gigantes. Entre os dois principais eixos, enormes e podres, da comunicação brasileira. Que um destrua o outro.
A querela está apenas começando. Vai longe, e vai ser muito mais divertida ainda. Acompanhem. Nós estaremos de butuca ligada.
O Correio do Povo, que pertence à Rede Record, não tomou conhecimento do acontecido. Na edição de hoje, não há uma linha sobre o assunto. Diante da cobertura do Jornal da Record, fica claro que não é uma política da empresa. Parece, antes disso, que o jornal não sabia o que fazer e acabou optando por não dar nada com medo de falar bobagem.
Fonte: Vooz
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