Para escaparem ao casamento forçado, dezenas de jovens guineenses refugiaram-se durante quatro anos sob a protecção de pastores evangélicos e regressaram agora à sua tabanca.
Bissau - Num fim de semama do pluvioso e quente mês de Julho, Foia, um lugarejo da região de Quinara, no Sul da Guiné-Bissau, está em efervescência. Dezenas de raparigas da localidade, que há quatro anos, ainda adolescentes, fugiram de casa para escaparem ao casamento forçado, reencontravam as respectivas famílias para fazer as pazes.O regresso não foi pacífico. A fuga das meninas, e de outras quatro das redondezas, foi vivida pelos pais como uma afronta à comunidade. As raparigas, com receio de represálias, quase nunca voltaram à sua terra.
Foia é uma típica tabanca (aldeia) de Fonta, como os balantas, uma das etnias mais numerosas da Guiné, designam os seus conterrâneos que há várias gerações se deslocaram do Norte para se instalarem na parte meridional do país.
Os «benham Fonta», os que foram para o Sul, são conhecidos pela sua maneira rápida de falar, mas também por serem muito arreigados às suas tradições ancestrais. Uma delas é o «beguima uina lanté», que significa, literalmente, dar alguém a um homem. Por outras palavras, o casamento combinado e quase sempre imposto à noiva.
Esta prática, hoje comum às comunidades muçulmanas, é vista como um anacronismo pela maioria dos balantas, mas ainda assim persiste viva nas zonas rurais de Quínara e Tombali, regiões que foram o santuário da guerra pela independência, e como tal viram as suas infra-estruturas básicas danificadas. E mais de três décadas após a libertação, continuam de difícil acesso e quase entregues a si próprias. Embora a popularização dos telemóveis, há cerca de cinco anos, tenha contribuído agora para tirá-las do relativo isolamento. Este atraso é, talvez, uma das causas da subsistência destes costumes.
Este caso das noivas em fuga veio para a ribalta em finais de 2006, quando um relatório da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH) deu conta de que dezenas de jovens estão abrigadas em missões evangélicas de diversas partes do país, com medo da violência exercida por familiares que quiseram forçá-las a aceitar um matrimónio contra a sua vontade.
O abandono da casa paterna e o refúgio em instalações de missionários, com a cumplicidade de um ou outro familiar e facilitado pelos professores e pastores protestantes, é ainda, na maioria dos casos, o único recurso para poderem continuar os estudos e a prática da religião cristã, que lhes abre novos horizontes e cria mais oportunidades de promoção pessoal.
O casamento tradicional, pelo contrário, para uma jovem, quase adolescente, significa viver agarrada às lides domésticas, à agricultura e à procriação. Em locais remotos, longe de todos os confortos do mundo contemporâneo. Nessas paragens, as relações humanas regem-se em grande medida segundo os usos e costumes herdados dos antepassados, onde a mitologia e a mentalidade mágica ainda têm grande preponderância.
Criança prometida
Um pai ou um tio destinam a filha ou a sobrinha ao casamento com alguém que também já lhes tinha prestado o mesmo serviço. Ou que já lhes tinha pago um dote antecipado, que consumiram, e vêem-se na obrigação de dar a rapariga em casamento. Quem não cumpre a sua palavra fica em dívida e acredita que poder morrer por isso.
Entre a etnia papel, que povoa a capital e as regiões próximas, onde já é mais raro este género de situação, a criança é prometida ainda na infância a um pretendente, que por isso deve ajudar a família do futuro sogro na lavoura até o dia em que a sua prometida esteja em idade de contrair matrimónio.
E se a noiva recusar o parceiro, que com frequência é um idoso, um estranho ou alguém que não aprecia, o embaraço e o receio da vergonha levam os familiares a virarem-se contra ela, para forçá-la, sob a ameaça de punições físicas e interdições várias, a resignar-se com a sua sorte. Motivos semelhantes levaram Ntchanga Té e Codé, duas jovens papel, a pedir a protecção da Igreja Evangélica.
Ndelá Sana Ialá e as colegas de Foia vieram de terras mais distantes e também foram espancadas e humilhadas pelos familiares, após uma tentativa fracassada de fuga. Depois da tareia que levou, Alassan, uma das meninas de Foia, ficou dias a fio a urinar sangue. Mas não desistiram.
A fuga de Quinara foi uma pequena epopeia, com travessia de zonas pantanosas, riachos, refúgio provisório na floresta, sob a chuva, para escapar à perseguição de familiares, como sucedeu com Filomena Ksin, da aldeia de Bessassema.
A Igreja Evangélica em Bissau chegou a acolher mais de vinte raparigas. Mas por falta condições de alojamento e meios para alimentá-las, e também para evitar conflitos com as comunidades de origem das raparigas, que acusam os pastores evangélicos de «roubarem» as suas filhas, negociou com os pais e autoridades o regresso das meninas.
A cerimónia de «entrega» das raparigas rebeldes às suas aldeias de origem foi um sucesso. Os familiares acolheram-nas de braços abertos e perante a população, autoridades e a Televisão comprometeram-se a não forçar mais nenhuma a casar. A tradição levou assim um duro golpe, mas não morreu.
Fonte: Revista África 21
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